quarta-feira, 9 de abril de 2014

Ponto de Restauração

*Um texto de Lázaro Ambrósio

Eu era uma palavra não dita
Pelo receio absorvida
Um ponto de interrogação no fim da frase insegura
O jovem nos braços da mulher madura
Continha no peito a lembrança dos deslizes
Que nos impedia de cantar felizes
Levava nos ouvidos o zunido dos gritos emitidos pelo flagrante
No dia que o sempre perdeu para o instante
Olhava nos olhos nervosos da sinceridade traída
Vendo que ela procurava uma saída

Velejava nas ondas do mar revoltado
Dormia na cama do amor acabado
Lembrando do tempo do riso espontâneo
De comer risonhos o macarrão instantâneo
Da tua cabeça deitada em meu peito
Teu doce cheiro
O cigarro aceso, do vinho o trago
O calor do afago
E o filme entediante
Que nos levava a necessidade
Do toque e do estado delirante

Resta a parede rabiscada
A foto emoldurada
O lado esquerdo da cama vazio
E o frio
Na falta do corpo carente
Daquela pele quente
Dominada pelo cio

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Cara Bailarina

*Um texto de Lázaro Ambrósio

Quisera poder descrever os desenhos que vi pintados no ar
Pelo qual a tua imagem deslizava ao som das canções pra esquecer
Dentre os sons da música que minha alma ouvia
Eu produzia com as mãos as notas que se misturavam ao silêncio
O violão, meu porta voz me traduzia
E você flutuava no ar sob a ponta dos pés por causa do singelo ruído ritmado
E deslizava e parecia que os sons emitidos vibravam no teu corpo
Sentia talvez como eu a vibração do compasso
Bem no lado esquerdo do peito, pulsando o sangue
E bombeando sensações que só poderiam ser expressas pelo movimento
Cada toque nas cordas gerava um movimento
Cada movimento me arrebatava
Era um rodopio tão intenso, uma beleza tão encantadora, que me fez parar nesta manhã pra escrever umas linhas descrevendo essa sensação de arrebatamento, senso comum dentre os seres de carne
Eu suspirava
Tudo era você, o som e o silêncio
Eu senti até vontade de rimar
Pode acreditar?
Tentar decifrar
Com as palavras representar
O que não dá pra expressar de olhos vidrados e boca semi aberta de espanto 

Não posso descrever em toda plenitude a tua imagem, os sons e o silêncio
Só expulsar uns pensamentos represados

E temo o fato de ser repetitivo
Pois me repito
Ressinto
Me acho
E esqueço
Entretanto esta manhã não foi esquecimento
Ainda passa pelos olhos a silhueta dos passos encantados
E mesmo repetitivo tive de por no papel a intensidade da dança
A suavidade e força dos gestos clássicos
Apreendidos arduamente pelos nervos alongados
Pelos ossos dos dedos espremidos pela sapatilha que oprime
E pela insistência em deslizar no ar como uma pintura
Moldurando a cada passo a realidade perfeita


Cara bailarina, muito obrigada.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Um dia tranquilo

*Um texto de Lázaro Ambrósio

Atormentado pelo relógio sigo contando os minutos das horas da minha vida vendida. Procuro abstrair, me orientar acerca de assuntos propostos pela mídia. Caço uma matéria que me provoque o asco necessário para sentir-me vivo, e arrancar-me deste estado de torpor. Mas o tempo vai engatinhando dolorosamente. E permaneço sentado na mesa deste escritório monótono. Enquanto o sol não encontra resistências para aquecer a paisagem da minha janela fechada. Abro uma fresta, respiro o cheiro da liberdade, a fecho novamente, e volto pro cotidiano da minha vida ilusória. Estava a ponto de deslizar na cadeira ao encontro de um sono profundo, que as noites mal dormidas há tanto tempo me impedem de ter, quando o chefe adentra na sala abrindo subitamente a porta, e sou obrigado a me ajeitar na cadeira, e simular que possuo como característica uma postura disposta ao trabalho. 
O chefe diz:
-Bom dia!

Eu sinto um nervosismo tremendo ao ouvir estas palavras. Ficarei ainda mais oito horas do dia mantendo este estado de bem estar que a frase dita procura estabelecer. Gostaria de mandá-lo para o inferno Arrancar meu crachá e arremessá-lo ao seu encontro. Maldizer o sistema que me obriga a servidão, vomitar algumas verdades bem na cara dele. E nesse movimento interno absolutamente insuportável, com a ânsia do grito subindo pela garganta afogada lhe respondo:
-Bom dia...

 O ar condicionado está frio. A cadeira me dói às ancas. A tela do computador me cansa as vistas. Quando escrevo, meu pulso fica dolorido. Quando subo as escadas em direção ao meu calabouço, me doem os joelhos. Estou envelhecendo. Os outros funcionários sorriem inexplicavelmente satisfeitos. Estou esquecendo a vida como era quando era livre e desempregado. Não consigo ser pontual, e me sinto sujo por isso. O chefe fala, e sua voz é cativante:
-Seu Cláudio, pode me imprimir o relatório do processo 1964/2013?

Deveria ser um movimento simples, um comando breve que executaria a ação em um tempo mínimo. Entretanto este é o meu tempo, o meu tempo que vendi junto com a minha vida perdida. E tenho o direito de sofrer a amargura deste meu desperdício. Neste momento gostaria de ter a minha alma de volta. Respiro e expiro profundamente procurando o equilíbrio dentro do meu desespero silencioso. Olho para o chefe por cima dos meus óculos antigos e respondo serenamente:
-Sim senhor...

Em um gesto ágil, realizo a tarefa da impressão através de um comando específico. E por um breve instante tenho a nítida impressão de ter sido útil. Uma faísca de alívio é sentida dentro do meu peito angustiado.

Meu holerite chegou. Abro devagar o envelope lacrado, observo os valores descritos, ao mesmo tempo em que uma lágrima discretamente desce pelo meu olho esquerdo. Não tenho certeza se a lágrima caiu pela emoção da recompensa. Por isso não a enxuguei, e deixei que ela secasse naturalmente, permitindo que escorresse por boa parte do meu rosto.